sábado, 21 de junho de 2014

Não acredito que a minha estrela me falhe.

                                     

Já lá vai o tempo em que te escrevia diariamente, mais do que uma vez. Depois passou a algumas vezes por semana, depois algumas vezes por mês, depois passou a anos. Agora, raramente. Não me faz querer-te menos. Não me leva até ao embrulho do esquecimento.
Esqueci-me do som da tua voz.
Acordei às quatro da manhã aflita com isso. Não sei se estava a sonhar e ouvia toda a gente Menos a Ti. 
Estou assustada desde então.
Será que já vais assim tão longe? Foi um sinal teu a dizer-me que te magoei por não ter pensado em ti assim tão insistentemente? Acredita que se estivesse no Seixal ía imediatamente colocar o vídeo e ouvir-te. Talvez acalmasse o meu coração. 
Nunca vai cessar pois não? É essa a verdade não é? 
O meu trabalho tem consumido toda a minha energia. Novas provas, novas responsabilidades. Tu sabes como tenho a mania da perfeição e de não querer que nada corra mal.
Tem sido só a vida a correr Mamã. 
Hoje tive uma consulta com uma esteticista para uma limpeza de pele, com direito a massagem de relaxamento, com explicação em como utilizar a maquilhagem correctamente. Não tivemos tempo para isso.
Depois, saí de lá e fui às compras. Nem de propósito, em cada loja que entrava e ía experimentar roupa, só havia mães e filhas. Só ouvia as opiniões e elas a resmungarem. Fui andar na rua irritada por não me conseguir lembrar de nenhum momento desses contigo. Só num dos meus aniversários em que fomos à Jacadi no Carrefur, vê lá... 1 episódio.
Depois fui sentar-me a almoçar e a ler. Estou a ler Geometria do Amor de Luís Quintino. Um Pai que relata os últimos anos do filho e a luta contra o cancro do filho. Mas acrescento, de Pai e Mãe também. 
E, pensei para comigo, que acto de coragem. Que acto de extrema coragem relatar a cada pormenor o que se viveu e dar ao mundo a conhecer tudo isso. O Isso que talvez me esteja de facto a ajudar no meu luto. No meu luto por ti, pela Leonor, pelos momentos utópicos que idealizo, imagino mas que nunca serão vividos porque assim teve de ser. Já não lamento. Já não me revolta. Serenamente confesso que me deixam apenas triste. Depois tenho de ir comprar uma garrafa de vinho tinto, sento-me à janela e escrevo docemente.
O Dr Quintino descreve tudo com uma clareza tão profunda que nos deixa dormentes. Relata aqueles momentos de silêncio, de incerteza e de angústia com uma certeza real e ferozmente vivida.
Em certas alturas até tenho de fechar o livro porque me recordo do subir das escadas, do caminhar lento do corredor, do virar para entrar no quarto. Seis camas. Ficavas quase sempre na da janela. Sempre a sorrir, sempre tão viva  e forte como esta minha lembrança. Nunca, mas mesmo nunca, pensei que sucumbisses a esta doença. Jamais, posso mesmo dizer-te.
Falaram-me imenso de um filme que estreou. Um romance. Claro que não descansei enquanto não fui ver. Mas, depois de tudo isto desde as 4 da manhã, escolhi o pior dia, ou não. Dizem que hoje o Verão começou. Portanto é o dia maior do ano. Há tempo para tudo.
O filme é um romance. Mas um romance com dois doentes em fase terminal. 
Ora pois.
Fui demasiado inteligente. 
Conspirou tudo a favor de estar aqui sentada, com o meu vinho, a escrever-te. Talvez assim o tivesse de ser.
Hoje tinha coisas combinadas e desmarquei. Tinha jantares que disse que não podia ir porque teria o que desmarquei e, aqui estou, na noite maior do ano, sozinha em Londres. À janela, numa noite quente, num céu que tem duas estrelas ao lusco-fusco do entardecer. E, a verdade é que me pareceu certo estar assim, porque há tempos que não estava assim, pertinho de ti.
Quando o filme acabou percebi que nunca nos preparámos para o nosso fecho. Não me deixaste cartas, não nos abraçamos, não me falaste de ti. Do que foste, do que querias que eu viesse a ser. Não.
Nunca mencionaste sequer que tinhas um linfoma.
Um cancro. 
Um carcinoma. 
Uma merda. 
Podemos dizer uma merda. 
Hoje em dia leio em muitos artigos. De facto, exprime fortemente. Sem clichês. Sem peneiras. Porque o cancro é de facto uma grande bosta na minha vida.
Podíamos ter trabalhado mais tudo isto, como todos os romances das telas de cinema. 
Podíamos ter feito um funeral contigo viva para que de facto visses uma passagem de fotografias maravilhosas que tens connosco, em cada momento da tua vida. Para que não os esquecesses. Podíamos ter escrito poemas e dedicatórias extraordinárias como tu. 
Os funerais deveriam ser celebrados em vida, eu acho. Porque se a vida é isto tudo de rápido, de intenso, de curto, de espacial, de especial... Então sim, no mínimo era o merecido.

Aqui a tua filha Maria passa agora os dias a ajudar casais a terem filhos. Trabalho em fertilidade. Toda a gente critica quando se deparam nos 40. Quem lhes garante que não vão viver mais do que 13 anos com os seus filhos? As minhas colegas fazem os impossíveis para me colocarem os bebés nos braços e tirarem fotos de propósito para provar que os segurei. Não entendem como tenho este pavor de pegar num bebé ao colo.
Assusta-me colocar assim um ser frágil no mundo, assim como me custa segurar-lhes no colo. Acho que o meu pavor em pensar na ideia de ser Mãe pode ser transferido e eles sentem e começam a chorar por nao quererem estar no colo, que é meu. Acho que luto contra a minha própria carência desse mesmo colo roubado.
E sim, tens uma filha desequilibrada.
Mas olha que passam os dias a dizer-me que sou uma mulher muito forte. Estou um bocadinho cansada disso. Não acreditando, não se confia nisso. É tudo e simples.
A verdade é que os meus pensamentos não têm só estado longe de ti. Têm estado longe de tudo. Ocupado por algo diferente.
Lidar com as saudades de quem desapareceu, eu tenho de aceitar. Mas lidar com as saudades de quem está vivo e, que eu espero, à minha espera. Dificulta-me a digestão e o processamento. Não é que não pense em ti, mas, tenho pensado demasiado, ponto e virgula.


Mas continuam a dizer-me diariamente que o país que me espera esta fraco e inseguro. 
Fraca e insegura tenho andado eu nos últimos 5 anos.
Não sei do que se tem medo. Não quero continuar a ser a miúda forte que todos me tendem a lembrar. Irrita-me profundamente pois não é uma opção. Mas se tenho opções, gostaria de as considerar.
E, hoje é dia 21 de Junho.
O dia maior do ano. Indeed.


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